segunda-feira, novembro 1

ARTIGO ESCRITO POR MIGUEL DE SOUSA TAVARES, EM 24/9/2004

Artigo publicado no Jornal Público, para reflexão de como vai este Governo. Vale a pena recordar.
Sinais de Desagregação

1. Se o Estado abriu mão de um bem essencial, como é a energia pública, e a sua privatização representou mais dinheiro para os cofres públicos e tarifas mais caras para os consumidores;
Se o Estado abriu mão das telecomunicações fixas, colocadas, em situação de monopólio de facto, sob a alçada de uma empresa que presta o pior serviço telefónico e pratica os mais altos preços da Europa, fazendo do telefone um produto de luxo e aplicando as mais-valias na construção paulatina de um império mediático que começa a ameaçar a efectiva liberdade de imprensa;
Se o Estado se prepara igualmente para abrir mão das águas, entregando à gestão privada aquele que é o mais essencial dos serviços públicos;
Se o Estado se prepara igualmente para vender a TAP, que tão imprescindíveis serviços presta ao país e para cuja sobrevivência foi exigido um esforço sem precedentes aos contribuintes;
Se o Estado desistiu de administrar justiça, delegando as suas funções nos poderes corporativos judiciais, nada podendo contra o facto de haver quem espere dez ou vinte anos por uma sentença;
Se o Estado vai desistindo de administrar os próprios hospitais públicos, pagando fortunas a quem o faça em seu nome e sem resultados consensualmente melhores;
Se o Estado é incapaz de cobrar impostos a quem os não paga, compensando a sua inépcia com a agravação constante dos impostos dos que pagam;
Se o Estado é incapaz de cobrar os seus próprios créditos, preferindo vendê-los, com substancial desconto, a quem o faça;
Se o Estado é incapaz de modernizar e tornar funcionais os seus serviços administrativos, em cuja manutenção gasta 60 por cento da colecta fiscal;
Se, apesar disso, o Estado não valoriza os que o servem, preferindo o mau funcionalismo mal pago do que o bom funcionalismo bem pago;
Se o Estado não é capaz de exigir responsabilidades aos seus gestores públicos, que enriquecem com ordenados e pensões de luxo, enquanto as empresas definham;
Se o Estado não é capaz de garantir que os doentes sejam operados nos hospitais públicos quando necessitam e não quando há oportunidade;
Se, apesar disso, o Estado, representado pelo actual Governo, se propõe cobrar os serviços de saúde que presta, segundo um critério em que penalizará quem paga impostos e aliviará quem foge a eles;
Se o Estado não consegue garantir o ensino público a tempo e horas, porque, apesar de também ter delegado em empresas privadas a função de colocar os professores nas escolas, acaba a fazer as colocações "à mão", com funcionários recrutados "ad hoc";
Se, apesar de todos os avisos e de um ano inteiro de preparação, numa só semana de calor, o Estado é impotente para evitar que arda mais área do que no ano anterior, dando publicamente um espectáculo de total impotência, descontrolo e irresponsabilização em cadeia;
Se o Estado não consegue impedir que o património natural do país seja continuamente saqueado pelo conúbio de interesses entre construtores e autarcas, comendadores e financiadores dos partidos;
E se, apesar de tudo isto, o Estado gasta todos os anos 55 por cento da riqueza produzida no país, chegou a altura de colocarmos a pergunta óbvia: para que serve o Estado? Para que pagamos impostos? Para que elegemos um chefe de Estado? Para que votamos em eleições?
Se não querem mais o Estado, digam-no, escrevam-no, decretem-no. Terminem com as obrigações do Estado e com as obrigações para com o Estado. Vamos experimentar ser uma nação sem Estado. Com corporações e partidos. Logo se verá o que resta.

2. Li algures que uma das coisas boas levadas já a cabo por este Governo foi a resolução da situação na Caixa Geral de Depósitos. Li e fiquei a pensar se serei eu que sou ingénuo ou eles que já perderam o descaramento. Vejamos.
A Caixa é um banco próspero e, como banco das operações do Estado, só pode sê-lo. É cientificamente impossível perder dinheiro a administrar a Caixa e daí a cobiça que ciclicamente se manifesta em relação a ela, com o eterno canto de sereia da privatização - que significaria um excelente negócio para quem lhe deitasse a mão e para o governo da altura, e simultaneamente uma delapidação do património público e a definitiva abdicação do Estado de ter algum poder regulador no sector bancário. O PSD tinha um presidente seu na Caixa e acrescentou-lhe um vive-presidente, o eng.º Mira Amaral - exemplo perfeito de uma carreira construída na constante alternância entre o governo e a gestão das empresas públicas: enfim, um servidor do Estado. Parece que, ao fim de pouco mais de um ano, eles não conseguiam entender-se um com o outro, e avançou-se então para a solução alternativa: dispensar os serviços de ambos e nomear um novo presidente - obviamente também do PSD - e, desta vez, sem a companhia de um vice-presidente. "Solução brilhante", mandou dizer a central de propaganda do Governo. Eu desconfiei que eles tivessem saído assim, tão de mansinho. Depois, descobriu-se porquê: por pouco mais de um ano de trabalho e, pelos vistos, de desentendimentos, o eng.º Mira Amaral vai receber uma pensão vitalícia de 18.000 euros por mês. O dr. António Sousa ainda não se sabe. Mas é provável que ambos acumulem às pensões vitalícias dignas de administradores do Chase Manhattan com 40 anos de casa os vencimentos até final do contrato, participação nos resultados e, quem sabe até, uma indemnização pela saída. Tudo é possível, desde que se instituiu o hábito de serem os próprios gestores públicos a votarem as suas mordomias. E pedem aos funcionários públicos que aceitem, depois de dois anos de salários congelados, receber um aumento de 1 por cento? Com que cara?

3. Confesso que ultimamente o "Diário de Notícias" anda muito arredado das minhas leituras diárias. Abro, por exemplo, a edição de anteontem na página 9, e ela é inteiramente constituída por três colunas de opinião de três propagandistas do Governo. É um bocado demais para a minha capacidade digestiva. Agora, com Henrique Granadeiro saneado politicamente e todo o grupo Lusomundo entregue a Luís Delgado, temo que a tendência seja para se reviverem os tempos - ideologicamente opostos, mas deontologicamente semelhantes - em que o "Diário de Notícias" era dirigido por Augusto de Castro ou pela dupla Luís de Barros/José Saramago. Desgraçada vocação!
Mas volto à página 9 da edição de anteontem. Chamou-me a atenção um artigo intitulado "Quem comenta os comentadores?". O artigo era assinado por José Bacelar Gouveia, "professor universitário" e, pelos vistos, também ele comentador habitual, visto que a coluna onde escreve até tem nome próprio: "A torto e a direito". Ora, foi isto mesmo que me chamou a atenção: sempre me divertiram os colunistas/comentadores que se insurgem contra o poder dos... colunistas/comentadores. A experiência diz-me que se trata, fundamentalmente, de manifestações de dor de cotovelo: é a inveja dos normalmente ignorados perante a audiência concedida aos outros.
Neste caso concreto, o despeito do professor Jorge Bacelar Gouveia virava-se contra o professor Marcelo Rebelo de Sousa e os seus comentários na TVI. Dizia ele que "é um mau hábito da nossa opinião pública render-se, acriticamente, a tais comentadores, que muitas vezes verberam tudo e nada, apenas com o confessado desejo de cumprir o seu papel, ganhar o seu dinheiro e satisfazer a sua vaidade pessoal". Logo por aqui se depreende que o professor Bacelar Gouveia não tem o desejo de cumprir o seu papel, não satisfaz vaidade alguma e até deve escrever de graça (o que não abona muito do conceito em que o tem o jornal que o acolhe...). Mas, mais importante ainda, é ele achar que "o comentário político tem de obedecer a algumas normas fundamentais", uma das quais "é a isenção dos comentadores, que só podem emitir um juízo seguro se surgirem desprendidos dos interesses ou das questões que pretendem apreciar". Esta, subscrevo-a eu próprio. O problema é perceber o conceito de isenção do professor Bacelar Gouveia. Segundo ele, Marcelo Rebelo de Sousa não o terá - embora não se incomode a concretizar porquê. Já o próprio, presume-se que será pessoa isenta, de outro modo não seria colunista do "Diário de Notícias". Mas o engraçado da história é que o leitor atento, que tivesse fixado, duas páginas atrás, a mesma edição do "DN", daria com nova fotografia do professor Bacelar Gouveia - o mesmíssimo comentador de duas páginas adiante - ilustrando a notícia de que o comentador isento acaba de ser nomeado, por indicação do PSD, presidente do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações da República, sendo descrito pelo próprio "DN" como "professor associado de direito da Universidade Nova de Lisboa, que já foi membro do conselho de jurisdição do PSD e é, de há muito, politicamente próximo de Santana Lopes".
Bem prega, o professor Gouveia! Cuide-se, meu caro Marcelo, que agora os Serviços de Informação da República têm a supervisioná-los um santanista isento, que o acha, a si, suspeito.

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