quarta-feira, agosto 16

EIS A NOSSA RÁDIO!



Caro Edgar Canelas,

Não podia deixar de lhe manifestar o meu apreço por ter dedicado a última edição de "Vozes da Lusofonia" ao músico e cantor luso-árabe Eduardo Ramos. Estou convicto que deu um bom contributo para que ele seja mais conhecido em Portugal como bem merece. Nunca é de mais dizer que o prezado Edgar Canelas e também os seus colegas Armando Carvalheda e Rafael Correia são os que, na nossa rádio, mais fazem pela divulgação da música portuguesa mais autêntica e, não duvido que, mais fariam se os deixassem. É deveras lamentável que nos alinhamentos musicais de continuidade da Antena 1 – como já tive ocasião dizer diversas vezes – artistas como Eduardo Ramos nunca se ouçam e que a playlist seja um mero repositório do mainstream em que as editoras centram a sua estratégia comercial. Poderá questionar-se para que existe uma playlist na rádio pública, mas admitindo que ela poderá fazer algum sentido sobretudo para preencher horários mortos, jamais se poderá admitir que ela seja formatada de modo a promover o que interessa às grandes editoras excluindo tudo o resto por melhor que ele seja. Conforme já tive oportunidade de opinar num texto que publiquei no blogue A Nossa Rádio, são sempre preferíveis programas de autor ou espaços musicais personalizados a uma playlist indiferenciada que ocupa quase todo o tempo de emissão. No caso da rádio pública, a playlist até poderia servir um nobre propósito: a inclusão de compositores/músicos/intérpretes de reconhecida qualidade marginalizados pelo mercado ou de menor projecção mediática que tenderiam a ser esquecidos pelos realizadores/locutores menos conhecedores do nosso acervo musical nas diferentes áreas. Infelizmente, na Antena 1 a playlist tem servido precisamente para o contrário: a exclusão e a censura do melhor da música portuguesa e mesmo da latina em geral e, inclusive, da melhor anglo-americana. Porque motivo ficam de fora da playlist nomes como Bob Dylan, Joan Baez ou Joni Mitchell? Voltando a Eduardo Ramos, terá de se dizer, em abono da verdade que, apesar da sua música não ser propriamente comercial, ele venderia certamente muitos mais discos se fosse razoavelmente conhecido, quer dizer, se as rádios nacionais o passassem e não se limitassem a promover apenas os produtos, muitos deles autêntico lixo, que as principais editoras atiram cá para fora. E aqui entramos num círculo vicioso do qual dificilmente se consegue sair. Convém lembrar, a propósito, que a fadista Mariza, que vai fazendo o furor que se conhece, quando quis gravar o primeiro álbum dirigiu-se às principais editoras radicadas em Portugal e todas lhe fecharam a porta até que lhe apareceu uma editora holandesa. Hoje, a Mariza é um caso de tremendo sucesso e os responsáveis das editoras que a menosprezaram já devem ter batido várias vezes com a cabeça nas paredes de arrependimento pela oportunidade de negócio que não souberam aproveitar. E quem fala da Mariza, fala de uma Cristina Branco ou de uma Ana Moura, ambas lançadas por editoras holandesas. Isto para já não falar de Mísia que só começou a ser conhecida em Portugal depois do enorme êxito que alcançou no estrangeiro, especialmente em França e no Japão. E se isto acontece no fado, no caso da música de raiz tradicional a situação é ainda pior não restando, frequentemente, outra solução que a edição de autor. Eduardo Ramos, felizmente, vai tendo patrocínios mas outros há que nem isso conseguem obter. Resultado: artistas e projectos que podiam enriquecer o nosso meio musical não logram vingar ou então vão lentamente definhando numa espécie de clandestinidade imposta. E neste aspecto, a rádio portuguesa e sobretudo a estação do Estado têm muitas culpas no cartório.

Por considerar o programa "Vozes da Lusofonia" um dos que melhor fazem jus ao paradigma de serviço público, aproveito o ensejo para lhe apresentar, se me permite a ousadia, algumas sugestões para futuros convidados (a seriação é meramente aleatória e não corresponde a qualquer ordenação valorativa):

1 – Afonso Dias: um cantautor muito talentoso que já anda nestas andanças há vários anos mas quase ignorado. Os álbuns "Olhar de Pássaro" e "Geometria do Sul" são dois discos excepcionais. Mas quantas pessoas os conhecem?

2 – Luís Cília: um compositor e intérprete também ele de grande talento, mas incompreensivelmente (ou talvez não) totalmente silenciado nos media e consequentemente só conhecido dos poucos que tem os seus LPs em casa. É incrível que a maior parte da sua discografia ainda nem sequer tenha sido editada em CD! O álbum "Cancioneiro", dedicado aos romances tradicionais, é uma pérola da discografia portuguesa. Quantos o conhecem?

3 – Luiz Goes: um dos nomes grandes da balada de Coimbra e que, tal como Adriano Correia de Oliveira, tem sido votado a um criminoso ostracismo pela rádio portuguesa. "Homem Só, Meu Irmão", "Cantiga de Um Vagabundo" e "É Preciso Acreditar" contam-se entre as mais belas baladas até hoje feitas em língua portuguesa. Luiz Goes já não é um homem novo e, por isso, urge que lhe seja prestado um merecido tributo pelas imortais baladas que nos legou. Há três ou quatro anos, saiu uma antologia com a sua obra completa. Quem deu por ela?

4 – Amélia Muge: sem dúvida alguma, a cautautora feminina de maior gabarito da música popular portuguesa. A sua discografia é relativamente escassa: quatro álbuns a solo – "Múgica", "Todos os Dias", "Taco a Taco", "A Monte" – e duas participações em projectos colectivos – "Cantigas do Maio", álbum evocativo de José Afonso em que fez parceria com José Mário Branco e João Afonso e "Novas vos Trago", álbum temático sobre o romanceiro tradicional em que também participaram Sérgio Godinho, João Afonso, Brigada Victor Jara e Gaiteiros de Lisboa. Portugal devia estar grato por ter uma compositora/intérprete desta estirpe mas, ao invés, tem-na tratado como se pertencesse à casta dos párias. Por exemplo, na rádio pública ele tem sido completamente marginalizada já só se conseguindo ouvi-la no "Lugar ao Sul", pela mão do seu colega Rafael Correia.

5 – Janita Salomé: talvez a mais bela voz masculina viva da música portuguesa mas absurdamente também votada a um escandaloso ostracismo pela nossa rádio. Ainda antes de Eduardo Ramos, Janita Salomé foi efectivamente o precursor a explorar e a pôr em evidência a influência árabe na música tradicional portuguesa. Os álbuns "Cantar ao Sol", "Lavrar em Teu Peito", "Olho de Fogo" e, mais recentemente, "Tão Pouco e Tanto" são bem ilustrativos do contributo original e inovador que Janita deu à nossa música. Será normal e admissível que este soberbo cantor nunca se consiga ouvir nos alinhamentos de continuidade da Antena 1? O único espaço em que ele aparece é – e mais uma vez – no "Lugar ao Sul".

6 – Manuel Freire: um extraordinário cantor de baladas e um grande divulgador de alguns dos nossos poetas maiores. Se António Gedeão se tornou um autor razoavelmente conhecido a Manuel Freire se deve, em boa parte. Quantas pessoas conheceriam o poema "Pedra Filosofal" ou mesmo "Livre (Não há machado que corte a raiz ao pensamento)", este de Carlos de Oliveira, se Manuel Freire não os musicasse e os cantasse aos sete ventos? Estou convencido que apenas os literatos e alguns cultores de poesia. A propósito, a poesia de José Saramago também foi objecto da atenção de Manuel Freire num álbum editado há poucos anos e intitulado "As Canções Possíveis" (título bem sugestivo). Como se justifica que nem sequer um tema deste disco passe na rádio pública? Quando até o nosso Nobel da Literatura é amordaçado na rádio de todos nós, muito mal vai este Portugal dito livre e democrático. Gestos destes só vêm dar razão a Saramago quando preferiu, para viver, uma inóspita ilha das Canárias a este prazenteiro país de pigmeus.

7 – Pedro Barroso: um dos nomes cimeiros da música popular portuguesa mas que ainda não logrou alcançar o justo reconhecimento que lhe é devido. Pedro Barroso – tal como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto Bordalo Dias, Vitorino ou Sérgio Godinho – é dos compositores/intérpretes que mais contribuiu (e continua a contribuir) para o enriquecimento no nosso património musical. Por isso, o boicote que lhe tem sido movido pela rádio pública é um crime de lesa-cultura. Não está em causa o prezado Edgar Canelas que já o teve como convidado para apresentar o soberbo álbum "Navegador do Futuro", mas dói-me a alma vê-lo excluído da playlist da Antena 1. Ele continua a criar e a publicar, mas quantas pessoas tomam conhecimento dos seus discos. Estou convencido que quase exclusivamente os indefectíveis, sobretudo os da sua geração. Aos mais novos, muitos deles potenciais apreciadores da sua música, os seus trabalhos discográficos passam, pura e simplesmente, despercebidos. No final do ano passado foi lançada uma bela antologia mas ao contrário do que seria expectável nem sequer foi disco Antena 1. Efectivamente este duplo CD, mais do que uma vulgar colectânea, é uma verdadeira antologia pois, além de estar organizada por áreas temáticas, inclui efectivamente o melhor que Pedro Barroso fez até 1990. A par dos temas mais conhecidos como "Cantar brejeiro" ou "Menina dos olhos d´água", o álbum está recheado de autênticas pérolas do repertório de Pedro Barroso (e de toda a música portuguesa) que seria importante divulgar. É o caso de "Anarcristos e viagens", "Longe daqui", "Água", "Praia portuguesa", "Embaixador do mar" e "Não sei", este último sobre um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen. Em boa altura, veio a lume esta antologia porque alguns dos seus melhores álbuns como "Longe d´Aqui", deixaram de estar disponíveis no mercado. Cumpre à rádio pública dá-la a conhecer, tal como tem feito e – muito bem – com as recentes compilações de Paulo de Carvalho, António Variações e Luís Represas (o triplo CD "Tudo", de Vitorino, apesar de ter sido disco Antena 1, depressa foi atirado para o baú das coisas inúteis).

Muitos mais nomes se podiam citar, mas como esta explanação já vai longa, fico-me agora por aqui.

Com os melhores cumprimentos,

Álvaro José Ferreira

Post Scriptum : Dado que nesta carta são apontados alguns aspectos relacionados com a rádio pública que o ultrapassam, achei por bem dela dar conhecimento ao Provedor do Ouvinte, na esperança de que ele se digne submetê-los à sua apreciação.

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