ARTIGO PUBLICADO NO PRIMEIRO DE JANEIRO
MOSCADEIRO
AS REFLEXÕES DO OUTONO
Confesso que o Outono é um mês atraente. Não só pelas cores das árvores, mas muito mais pelas “quentes e boas” e pelo cheiro do húmus da terra, às primeiras chuvadas. É uma época destinada principalmente à reflexão, não só porque aí está o advento cristão, mas também pelo começo do agasalho. Já me lembrei muitas vezes que é propícia a umas conferências do Outono, onde vários matizes poderiam pensar na vida e no mundo, no entanto nunca me predispus a promovê-las. Talvez por falta de imaginação. No entanto neste meu escritório, em casa, e enquanto escrevo não sei quantas coisas, penso na vida e na sociedade, e na própria incapacidade de proclamarmos uma outra maneira de ser e de estar, própria de seres civilizados. Neste Portugal e nesta Maia, onde vivo há quase três décadas, onde tento anular o solipsismo, e traduzir a solidariedade e a fraternidade, onde fico só, muitas vezes, lutando como D. Quixote contra moinhos de vento, existem tentações de perante os artifícios das tácticas e das estratégias, deixar as águas moverem-se, mas logo levantamos as nossas capacidades de não nos abatermos perante situações de interesses comezinhos, de mentiras que parecem verdades e do servir-se de tudo para trucidar todos, desde que as nossas principais preocupações sejam satisfeitas. Digamos que, em certa medida, somos possuídos por desilusões, de quem parece querer defender valores de dignidade da pessoa humana, mas logo se vendem por pratos de lentilhas oferecidos pelos detentores dos poderes, que são efémeros, e não emitem sinais de vida. Mas dão, que para uns tantos (sempre minorias!) suguem o trabalho (das maiorias) e se banqueteiem com ele. Por isso, cada vez mais, quem governa, os políticos, são tidos como corruptos e fazedores de hipocrisias, que sustentam a si próprios, mesmo por cima dos cadáveres que vão semeando. E cada vez que se ignora uma mulher ou homem que sofrem, por não terem dignidade, casa, alimento e outros bens fundamentais à vida, ignora-se a própria liberdade de qualquer ser humano, porque uma sociedade justa só poderá sê-lo na medida em que existir paz, e esta é apanágio da sinceridade e honestidade.
Trabalhar para que estas situações se modifiquem, quando as máquinas das propagandas, habilmente montadas, impedem, impiedosamente, em nome da sua “solidariedade”, que uma nova ordem mundial faça desta terra a alegria e o fermento de viver, é digno de loucos e utópicos, mas que nessa loucura e utopia conseguem forjar as armas, da paz e do pão, que levarão um dia todas e todos a viverem de acordo, de como diz o Êxodo, com uma “terra onde mana leite e mel”. Para isso é preciso a luta, às vezes no deserto, ou pregar aos peixinhos, como S. António de Lisboa, para que as pessoas se convençam que não existe outra solução que não seja, em liberdade e democracia, cimentarmos a fraternidade e a verdade. Esta é muitas vezes dura, porque enfrenta um campo armadilhado de mentiras, feitas à imagem de verdades, e que os demagogos adoram, porque isso lhes permite perpetuar os poderes, sejam eles políticos, económicos, religiosos, sociais ou culturais. Os poderes esmagam sempre os mais pobres, fabricados, também, pela indiferença, mal maior da nossa sociedade, sendo que, mesmo em Portugal, chegará o tempo, a que quem não tem dinheiro, embora possa ter uma vida de trabalho árduo, morrerá às portas de qualquer hospital. E tudo isso, muitas vezes, em nome de desenvolvimentos, traduzidos nos lucros, que habitam nas carteiras mais bem recheadas. Por isso, a luta contra os demónios existentes, é exigente, e faz de cada um, que não se verga aos poderes, um tu, muitas vezes só, e até sem a compreensão de tantos e tantos que continuam espezinhados.
Pode parecer que quem assim escreve já desistiu, mas não é verdade, tem é a coragem de aqui colocar tópicos, sentidos pela maioria dos desprotegidos, ou protegidos pela clemência de quem os faz, e lhes dá a côdea com que tranquiliza a sua consciência. Nada disto é o recurso de uma imaginação fértil, mas de quem recusa montar “tácticas e estratégias” no sentido de confundir os outros. Nem o que aqui se reflecte é um delírio não existente, mas a vida, vivida no mais profundo do nosso ser. Olhem para a Maia, verifiquem os poderes instituídos, quaisquer que eles sejam, e reparem na profunda realidade desta crónica. Não só para os executivos político - partidários, mas todos os outros, e vejam que a mentira parece vencer. É sempre assim, mas como o parecer não é ser, ainda há quem se levante, e podem ser poucos, às vezes sob o signo de ameaças veladas e outras concretizadas, e isolados, maltratados, ainda conseguem, quase destruídos, levantar a voz e proclamar essa outra terra, onde valha a pena viver. São sempre sal, pequena parte, como o sal está para a comida, mas suficiente para lhe dar o sabor.
Quem escreve não está desiludido, desiluda-se quem assim pretende, mas com a consciência de que caminhar por aqui é difícil, mas é possível. Assim, aqui vos deixa, as suas reflexões, neste Outono de 2006.
Joaquim Armindo
Membro da Comissão Política do PS da Maia
http://www.bemcomum.blogspot.com
Escreve esta coluna quinzenalmente.
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