quarta-feira, outubro 11

INTERVENÇÃO DOS LEITORES

PARA UM NOVO “NOMOS DA TERRA”

Editorial de Alain Benoist*

Só os imbecis conseguem acreditar que aquilo que se passa do outro lado do mundo não nos diz respeito. A era da globalização que, duma forma ou doutra, já aboliu o espaço e o tempo, faz com que os grandes acontecimentos, seja em que parte do globo for, nos afectem também.E afectam-nos tanto mais quanto a globalização marca também o fim de uma configuração geral do mundo e o estreita de um modo a que Carl Schmitt designou por um novo “Nomos da Terra”. O antigo Nomos eurocêntrico desapareceu no termo da Primeira Guerra Mundial. Depois de 1945, a Terra ficou submetida ao condomínio americano-soviético que, por sua vez, caíu com o fim da guerra fria. A questão que se põe hoje, com uma acuidade cada dia mais premente, é a seguinte: dirigimo-nos para um mundo unipolar, que inevitavelmente seria dominado pela única grande potência existente, os Estados Unidos da América, ou para um mundo multipolar – um pluriversum – constituído por grandes blocos geopolíticos e os cadinhos das grandes civilizações continentais, a serem outros tantos polos a regularizar a globalização?

Podem apontar-se muitas falhas aos americanos, mas não certamente a de deixarem de pensar no dia de amanhã. Só que eles pensam globalmente, o que lhes tem permitido encontrar sempre uma alternativa. Da mesma maneira que ontem utilizaram o comunismo soviético para tomarem a dianteira do “mundo livre”, hoje instrumentalizam o islamismo para imporem aos seus aliados a convicção de participar numa luta cujo objectivo é garantir-lhes, aos americanos, o absoluto domínio do mundo. As grandes linhas desta ofensiva global foram traçadas a partir de Setembro de 2000, antes mesmo da chegada de George W. Bush à Casa Branca, no “Projecto para um novo século americano” (Project for a New American Century), cujo título já fala por si.

Observadas desde o princípio dos anos 90, pelo menos, as guerras do Afeganistão e do Iraque, continuação que foram da primeira Guerra do Golfo de 1991 e do ataque pela NATO da ex-Jugoslávia (1991-2001), inscrevem-se num programa muito mais vasto que visa, por um lado, o controle das fontes de produção energética e, por outro, impedir a emergência de qualquer rival oriundo de não importa onde. O cerco da Rússia, a liberalização dos mercados e as “reformas” impostas através do Fundo Monetário Internacional na Europa de Leste e nos Balcãs, com a consequente desestabilização das economias nacionais, apontam no mesmo sentido. Trata-se de recolonizar uma vasta região que vai dos Balcãs à Ásia Central, garantindo a hegemonia do Mar sobre a Terra. Como se vê, guerra e globalização vão a par. O militarismo garante a conquista de novas fronteiras económicas com o fim de impor a economia de mercado à escala planetária.

No entanto, as coisas não se passam como estava previsto. Uma série de conquistas militares triunfais devia transformar o Golfo Pérsico num condomínio americano-israelita, mas o Iraque mergulha cada dia mais na guerra civil e no caos. Nada está regularizado no Afeganistão que, sob a tutela americana, se tornou o primeiro estado narcotraficante do mundo. E, apesar dos esforços desenvolvidos, novas potências se perfilam no horizonte: a China, em primeiro lugar, claro, mas também a India e o Brasil.

O orçamento militar anual dos Estados Unidos (400 biliões de dólares) representa hoje o equivalente do produto interno bruto de um país como a Rússia. Mas, na época das guerras assimétricas, a superioridade técnica e militar não implica necessariamente a decisão. Já o vimos no Iraque e no Líbano: o recurso a massivos bombardeamentos aéreos – enquanto no futuro não se empregam armas nucleares contra o Irão, por exemplo – não consegue esmagar uma resistência popular aguerrida, bem treinada e contando com o apoio activo da população. George W. Bush já fez matar, no Iraque, mais pessoas do que os mortos citados oficialmente no ataque ao World Trade Center. Em Washington, e também em Telavive, pratica-se a mesma política assente no princípio de que não há parceiro para a paz e que a potência militar permite atingir todos os fins em vista. A verdade é que não existe solução militar para problemas que são fundamentalmente políticos.

A nova agressão israelita ao Líbano, concebida e preparada desde há muito tempo em concertação com Washington, teve por finalidade destruír a resistência libanesa, preparar novas guerras contra a Síria e o Irão, desestabilizar o estado libanês e destruír as suas infra-estruturas. Inscreveu-se num plano geral de remodelação do “novo Próximo Oriente” que os Estados Unidos querem, o que viria a traduzir-se no desmantelamento de vários estados (Líbano, Irão, Síria, Jordânia, Egipto e Arábia Saudita) e a generalização do caos. De momento, a acção saldou-se por uma vitória do Hezbollah, apoiada por uma vasta maioria de libaneses e pessoas doutras confissões, por um total fiasco do exército israelita que, apesar dos massacres que levou a cabo, não conseguiu atingir os seus objectivos. Mas a guerra do Líbano foi o ensaio da guerra contra o Irão e daí a diabolização orquestrada à volta das “armas de destruição maciça”, que era suposto o Iraque possuir, ser retomada agora a pretexto das legítimas ambições de energia nuclear de Teerão.

Na América Latina, onde os Estados Unidos intervieram militarmente dezenas de vezes no decorrer do século passado, também há uma nova era. Acabou o tempo das guerrilhas, das ditaduras militares brutais, dos golpes de estado fomentados pelos Estados Unidos. A contestação tende a exprimir-se democraticamente – pela força da política e não pela política da força. Política que é, cada vez mais, oposta aos interesses americanos.

No período de transição que atravessamos, é claro que as incógnitas continuam sendo numerosas. Ninguém sabe o que fará a China da formidável potência de que se está a dotar. Incertezas semelhantes pesam no que respeita à Rússia, onde Vladimir Putin, aparentemente mais interessado em restabelecer a autoridade do estado do que a satisfazer as reclamações do povo, não consegue desenvencilhar-se da sua guerra colonial na Chechénia. No mundo arábico-muçulmano, o facto mais importante não é a dita “guerra de civilizações”, e sim a rivalidade, algumas vezes violenta, que opõe sunitas a xiitas. Alianças continentais e transcontinentais (os eixos Paris-Berlim-Moscovo, Moscovo-Pequim-Teerão, Caracas-Buenos Aires-Rio de Janeiro), começam a tomar forma, o que constitui uma ameaça para a talassocracia americana.

Neste tabuleiro de xadrez, a grande ausente é a Europa. Longe de pensar o mundo de amanhã, anda entretida a gerir os negócios do presente. Não tem vontade específica, não procura dotar-se dos meios naturais de uma potência. Pouco a pouco, vai cedendo às exigências de Washington. E os países que a compõem nem mesmo são capazes de se entender quanto aos objectivos da construção europeia. E no entanto, as pedras estão sobre o tabuleiro. Seja como for, um novo “Nomos da Terra” vai aparecer. Mundo unipolar ou multipolar? A corrida já começou.

*da revista Éléments/Paris

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