quinta-feira, setembro 23

ARTIGO PUBLICADO NO "DIÁRIO ECONÓMICO" SOBRE O PLANO TECNOLÓGICO DE SÓCRATES

Pela sua importância, uma reflexão sobre o Plano Tecnológico, defendido por Sócrates.

Alternativa a partir da inovação

Jorge Bateira*


José Sócrates convidou os militantes do Partido Socialista, e os independentes que com ele queiram colaborar, a trabalhar num programa que “enfrente as causas estruturais do nosso atraso” (Um Plano Tecnológico para uma Alternativa, Público, 02-08-2004). Aqui vai a minha resposta ao convite, para que não se diga que o debate é pobre de ideias.
O texto da ‘visão’ que nos propôs contém uma ambiguidade política surpreendente. Tendo o proponente pertencido a um Governo que se distinguiu por ter patrocinado a chamada “estratégia de Lisboa”, e levado a cabo um vasto conjunto de estudos (veja-se M. J. Rodrigues (2003) Para uma Política de Inovação em Portugal, Dom Quixote) preparatórios do Programa Integrado de Apoio à Inovação (PROINOV), esperar-se-ia que a sua visão assumisse o essencial do património herdado ou, sendo caso disso, se demarcasse dele. Estranhamente, o texto não tem uma palavra sobre a mais ambiciosa política de inovação até hoje ensaiada em Portugal, apenas dizendo que “não nos basta assumir a Agenda de Lisboa … precisamos de apostar mais forte”. E, não especificando o sentido dessa aposta, o texto até permite a interpretação de que se trata apenas de mais dinheiro.
Também eu acho que Portugal pode e deve ser ambicioso na aplicação da “estratégia de Lisboa”. Mas a solução não consiste em imitar outros países, como bem sabem os economistas do desenvolvimento. Assim, estamos ‘condenados’ a superar os nossos próprios bloqueios, a criar as nossas próprias instituições (no sentido do velho institucionalismo americano), e a descobrir as políticas que são mais eficazes aqui. Para tal, defendo mudanças importantes na política de inovação que vinha sendo construída por António Guterres na segunda legislatura, sem que isso signifique da minha parte um juízo global negativo sobre uma experiência que quase não passou da fase de arranque. Vejamos porquê.
De um ponto de vista conceptual, a política económica dos Governos de António Guterres (incluindo a política de inovação) manteve-se dentro do paradigma tradicional: o Estado só deve intervir nos mercados para colmatar ‘falhas’. Este fundamento da intervenção pública baseia-se numa concepção estática do mercado e da concorrência que há muito foi posta em causa por Schumpeter. O conceito de ‘mercado concorrencial em equilíbrio’, tomado como padrão do funcionamento óptimo do mercado, encerra em si mesmo uma contradição. De facto, a concorrência é uma realidade dinâmica com resultado incerto: há empresas que arriscam lançar novos produtos (ou processos de fabrico), criando nichos de mercado que durante algum tempo aliviam a pressão dos rivais; os consumidores também não escolhem os produtos que lhes interessam apenas em função do preço. É este processo de diferenciação, imitação, e selecção pela procura que explica a instabilidade dos mercados onde realmente há concorrência. Em última análise, o motor da concorrência é a inovação, o que contradiz a ideia de equilíbrio tão cara ao ‘mainstream’ da ciência económica. Ou seja, a teoria das ‘falhas de mercado’ não constitui fundamento credível para a política económica, muito menos para a política de inovação.(1)
A natureza deste texto não me permite abordar com um mínimo de rigor, ainda que sucintamente, vários outros aspectos também merecedores de uma análise crítica. Contudo, há um que não pode deixar de ser discutido: o conceito de conhecimento.
Alguns economistas que têm colaborado com o Partido Socialista desde meados da década de noventa (ou apenas mais recentemente) entendem as empresas numa perspectiva contratualista: as relações entre trabalhador e empresa seriam, no essencial, relações de natureza contratual. No entanto, há um aspecto crucial que este contratualismo ignora: as empresas são instituições (de natureza especial) onde a interacção entre os seus membros origina um elevado grau de ‘convergência’ de conhecimento entre as pessoas que aí trabalham, algo que não é alcançável através de qualquer outra forma de coordenação que lhe seja exterior. Só pela organização empresarial se consegue alcançar a motivação, a comunicação, a criação de uma comunidade de conhecimento que, em conjunto, suportam o desenvolvimento do negócio.
Aliás, as ciências cognitivas dizem-nos que o conhecimento provém da reformulação da experiência pessoal no âmbito das interacções que cada um estabelece com o próprio corpo, com outras pessoas, e com o mundo material, incluindo os suportes escritos que lemos. Por isso, não faz sentido que os economistas continuem a tratar o conhecimento como uma mercadoria, algo que se troca ou se acumula. Se formos à raiz da questão, temos de romper com a matriz conceptual do pensamento neo-clássico e assumir a subjectividade do conhecimento (e portanto, também do conhecimento utilizado na actividade económica) o que, além de permitir a formulação de teorias mais adequadas, também tem consequências para a política de inovação que adiante explicitarei.
Limito-me a um breve enunciado das seguintes:
a) A prática social dos empresários origina uma forma específica de conhecimento: pressupostos do negócio, uma forma particular de delimitar o mercado, identificação dos concorrentes. É através deste conjunto de representações (‘modelo do negócio’) que os empresários interpretam os desafios competitivos, ou o interesse da política económica. Esta dimensão interpretativa deve ser tida em conta e constituir objecto de reflexão em plataformas de trabalho com os empresários, no âmbito de uma política de inovação organizada em diferentes níveis (nacional, sectorial, regional) e aberta ao resto do mundo. Qualquer política de inovação ‘top-down’, centrada em incentivos que apenas reduzem o custo do capital, não promove a transformação de um ‘modelo de negócio’ inadequado às novas realidades.
b) Conhecimento científico e conhecimento tecnológico não respondem aos mesmos problemas, não adoptam os mesmos procedimentos, não dão origem a comunidades idênticas. A relação entre os dois tipos de conhecimento está longe de ser linear, aconselhando-se algum cuidado na discussão do tema da despesa em ciência. Há muito que está feita a crítica do ‘modelo linear’: ciência-tecnologia-inovação. Por conseguinte, para além da política de I&D, embora com ela articulada, precisamos de uma política de inovação (num sentido estrito) que tenha como finalidade suscitar processos de mudança das nossas PME. O seu objectivo último consiste em reduzir a distância cognitiva entre os empresários e outros actores sociais (consultores, centros tecnológicos, laboratórios, agências públicas), algo que não é enquadrável na ideia tradicional de ‘difusão da inovação’.
c) Os conhecimentos adquiridos no interior dos sistemas empresarial, científico, e da administração pública não são comensuráveis. Em cada um deles há uma linguagem específica e uma visão da sociedade a partir do próprio sistema. Por isso, a política de inovação não deve propor-se como objectivo criar um Sistema de Inovação que integre aqueles sistemas. Aliás, nas sociedades contemporâneas o Estado não está em condições de comandar os restantes sistemas sociais. Em vez de dar prioridade à arquitectura global das organizações públicas, e às suas relações, a política de inovação deve concentrar-se na animação das dinâmicas locais para que surjam no terreno entidades descodificadoras das linguagens dos diferentes sistemas (“cross-border organisations”), e mediadores capazes de gerar a confiança indispensável à cooperação.
d) As entidades que até à data têm gerido programas de apoio às empresas não estão em condições de assumir tarefas de dinamização do tecido empresarial como as que referi na alínea anterior. Pelas competências de administração que construíram ao longo do tempo, mas também pela cultura burocrática e pelos vícios que adquiriram na gestão de subsídios, essas entidades constituem a infra-estrutura do velho modelo da subsídiodependência que é urgente desmantelar. Uma análise caso a caso dirá em que sentido estas entidades devem ser reorientadas.
Sejamos claros: se o conhecimento é o recurso decisivo e a aprendizagem o caminho a percorrer, então deve recusar-se o apoio financeiro a projectos de empresas isoladas, como se tem feito através do QCA. Os recursos devem concentrar-se no apoio à inovação em rede, ou a projectos de cooperação rigorosamente avaliados. De facto, quando o projecto foi efectivamente concebido e executado em cooperação desencadeia processos de aprendizagem que são criadores de novas competências. Relativamente aos incentivos fiscais à despesa em I&D, é bom que se diga que constituem um instrumento genérico de redução de custos, dirigido sobretudo a uma minoria de empresas que já dispõe de alguma base de conhecimentos. Também estes incentivos deveriam ser reformulados no sentido de promoverem a cooperação, em I&D e noutros factores de inovação.
Uma política deste tipo só pode ser concebida e executada na proximidade das empresas, no sentido de que o conhecimento dos ‘policy-makers’ e seus assessores tem de ser confrontado e articulado com o conhecimento específico dos negócios. Há alguns anos, reconhecendo as grandes limitações dos programas tradicionais de apoio à competitividade, vários países (Inglaterra, Holanda, Dinamarca) começaram a experimentar um novo tipo de política centrado na mobilização dos actores regionais, e na execução de estratégias de inovação regional. Portugal, agarrado a um modelo centralizado e hierárquico, até hoje não foi capaz de lançar uma política de inovação a partir da mobilização do que há de mais dinâmico nos seus territórios.
Creio que estas ideias poderiam dar algum alento a todos os que hoje se sentem desmotivados com a incapacidade da actual maioria para formular, muito menos executar, uma qualquer política de inovação digna desse nome. Mas também não ignoro que esta visão está longe de ser pacífica. Rompe com ideias feitas, rompe com interesses instalados (também no interior do Partido Socialista) e, sobretudo, rompe com a subsídiodependência que hoje constitui um dos maiores obstáculos ao nosso desenvolvimento. Contudo, é obrigação do socialismo democrático liderar a mudança, nas ideias e nas políticas, e não apenas limitar-se a reconfigurar as políticas tradicionais no interior de um quadro conceptual aceitável pelo ‘mainstream’. Para chegar a essa liderança, o Partido Socialista terá de se abrir ao que de novo vai surgindo no diálogo entre as várias ciências, aí buscando inspiração para um projecto político que surja aos olhos dos Portugueses como alternativa convincente.
(1) Ver J. Stanley Metcalfe (2003) ‘Equilibrium and Evolutionary Foundations of Competition and Technology Policy: New Perspectives on the Division of Labour and the Innovation Process’, Revista Brasileira de Inovação 2 (1): 111-146.
* Economista, militante do PS

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