DE GUTENBERG A PIMPINHA
Por Nuno Markl
Por Nuno Markl
Johannes Gensfleisch Zur Laden Zum Gutenberg. Nascido em 1398.
Presume-se que tenha falecido a 3 de Fevereiro de 1468. Um operário
metalúrgico e inventor alemão, a quem se deve, na década de 1440, a
invenção da imprensa. O poder da criação de Gutenberg seria
demonstrado em 1455, ano em que o inventor editaria a famosa Bíblia em
dois volumes.
Sim, a Bíblia de Gutenberg tornou-se num marco notável na História das
palavras impressas. Até ao passado fim-de-semana.
No passado fim-de-semana, o semanário português O INDEPENDENTE
publicou, discretamente, no seu suplemento VIDA, uma coluna de opinião
da autoria de Catarina Jardim. Quem é Catarina Jardim? Nada mais, nada
menos do que a popular Pimpinha Jardim. Que fica desde já a ganhar a
Gutenberg neste ponto - Gutenberg não tinha nenhum nome de mimo. Ele
era capaz de gostar de ter um nome de mimo - não deve ser fácil ser
Johannes Gensfleisch ZurLaden Zum Gutenberg - mas creio que ainda não
era muito comum, na Alemanha do século XV, atribuirem-se nomes de
mimo. Muita sorte se alguma das namoradas lhe chamou alguma vez JOGU,
o único diminutivo aceitável de Johannes Gutenberg. E mesmo assim não
é muito aceitável, porque soa demasiado próximo a iogurte, e isso é
uma indústria completamente diferente daquela na qual Gutenberg se
movia.
Voltemos então a Catarina Jardim e à sua coluna no jornal. O título do
artigo é TODOS A BORDO, e trata-se - como o nome indica - de um relato
detalhado sobre um cruzeiro a África que a jovem fez.
Ela diz, no início "O cruzeiro a África foi uma loucura, pode mesmo
dizer-se que foi o cruzeiro das festas - como alguns dos convidados
chamavam ao navio em que Luís Evaristo nos presenteou com MAIS UM
BeOne on Board". Gosto da maneira como ela fala, sem explicações nem
perdas de tempo, de pessoas e iniciativas sobre as quais boa parte dos
leitores não faz a mínima ideia quem sejam ou no que consistem. Nada
contra - isto faz com que qualquer leitor se sinta cúmplice e
rapidamente imerso no universo Pimpinha. Adiante.
Ficamos a saber que ela esteve em Tânger, e que a experiência foi,
possivelmente a mais marcante da vida desta jovem. Passo a ler o que
ela escreve:
"Tânger é bastante feia, muito suja e as pessoas têm um aspecto assustador."
Nunca fui a Tânger, mas já fui a sítios parecidos e subscrevo
inteiramente as palavras de Pimpinha. Malditas pessoas pobres, que só
estragam o nosso planeta com a sua sujidade e o seu ar assustador! É
preciso ser-se mesmo ruim para se escolher ser pobre, quando se pode
ser tão limpo e bonito. Quando se pode ser, em suma, rico.
Eu penso que a Pimpinha acertou em cheio na raiz de todos os problemas
mundiais da pobreza. Andam entidades a partir a cabeça em todo o mundo
a pensar nisto, andou a Princesa Diana a gastar tantas solas de
sapatos caros a visitar hospitais, capaz de apanhar uma doença, quando
nós temos a Pimpinha com a solução. Se calhar basta lavar estas
pessoas, e talvez - acompanhem-me neste raciocínio; Pimpinha vai ficar
orgulhosa de mim - se calhar basta lavar estas pessoas, e em vez de
gastar rios de dinheiro a mandar comida para África, porque não os
Médicos Sem Fronteiras passarem a andar munidos de botox. Botox!
Reparem: não é fazer cirurgias plásticas a toda esta gente feia que
vive nestes países, porque isso seria demais.
Mas, que diabo - botox? Vão-me dizer que não é possível ir de vez em
quando a estes sítios e dar botox a estas pobres almas? Como o mundo
ficaria mais bonito.
Adiante. Pimpinha desabafa, dizendo, sobre as pessoas de Marrocos,
"apesar de já ter viajado muito, nunca tinha visto uma cultura assim -
e sendo eu loura, não me senti nada segura ou confortável na cidade".
Talvez. Mas vamos supor que trocavam Pimpinha por, vamos supor, 10 mil
camelos. Era um bom negócio para o Independente. Dos 10 mil, escolhia,
vamos lá, 2 para passar a escrever a coluna - o que poderia trazer
melhorias significativas de qualidade - e ainda ficava com 9 mil 998.
O que, tendo em conta que Portugal está a ficar um deserto, pode vir a
revelar-se um investimento de futuro.
Pimpinha prossegue: "Já em segurança, animou-me a festa marroquina,
com toda a gente trajada a rigor". Suponho que, para a Pimpinha
Jardim, "uma festa marroquina com toda a gente trajada a rigor", tenha
sido assim tipo uma festa de Halloween, tendo em conta que os
marroquinos são - como a colunista diz umas linhas acima - gente feia
como nunca se viu.
Adiante. Ela diz: "A seguir ao jantar, mais um festão que voltou a
acabar de madrugada". Calma - esclareçam-me só neste aspecto, para eu
não me perder. Portanto, houve uma festa, não é? E a seguir, outra
festa. OK.
Uma pessoa corre o risco de se perder nestes cruzeiros, com toda esta
variedade de coisas que acontecem.
Diz Pimpinha: "Desta vez não deu mesmo para dormir já que fomos
expulsos dos camarotes às 9 da manhã, para só conseguirmos sair do
navio lá para as 14 horas. Tudo porque um marroquino se infiltrara no
barco e passara uma noite em grande, uma quebra inadmissível na
segurança".
Ora bom. Ora bom, ora bom, ora bom, ora bom.
Portanto, aqui a questão é: viagens a Marrocos e festas com pessoas
vestidas de marroquinos, tudo bem. Agora, se pudessem NÃO ESTAR LÁ os
marroquinos, isso é que era jeitoso. Malditos marroquinos, sempre com
a mania de estarem em Marrocos. E como é que acontece esta quebra de
segurança? Eu compreendo o drama de Pimpinha. É que o facto da
segurança deixar entrar um estafermo marroquino vestido de marroquino,
numa festa com gente bonita vestida de marroquina, isso só vem provar
que, se calhar, os amigos da Pimpinha não são assim tão mais bonitos
do que essa gente feia de Marrocos. E isso é coisa para deixar uma
pessoa deprimida.
Temos nós a nossa visão do mundo tão certinha e de repente aparece um
marroquino e uma brecha na segurança... Enfim - nada que uma ida às
compras não resolva, ao chegar a Lisboa, certo, Pimpinha?
Adiante. Diz Pimpinha: "Já cá fora esperava-nos um grupo de policias
com cães, para se certificarem de que ninguém vinha carregado de
mercadorias ilegais - e não sei como é que, depois de tantos avisos da
organização, ainda houve quem fosse apanhado com droga na mala!"
DROGA? NUMA FESTA DO JET SET PORTUGUÊS? NÃO! COMO? NÃO. Recuso-me a
acreditar. Deve ter sido confusão, Pimpinha. Era oregãos. Era
especiarias.
Pimpinha Jardim declara: "Mas o saldo foi bastante positivo. Aliás,
devia haver mais gente a arriscar fazer eventos como estes".
Gosto desta Pimpinha interventiva. Sim senhor, diga tudo o que tem a
dizer. Faça estremecer o mundo. E com assuntos que valham a pena.
Aliás, era capaz de ser uma boa ideia escrever um e-mail ao Bob Geldof
a tentar fazê-lo ver que essa história de organizar concertos para
combater a pobreza em África... Para quê? Geldof devia começar era a
organizar concertos para chamar a atenção do mundo para a falta de
cruzeiros com festas. Isso é que era. Mania das prioridades trocadas.
Que maçada.
Mesmo no final, a colunista remata dizendo: "Devia haver mais gente a
arriscar fazer eventos como estes - já estamos todos fartos dos
lançamentos, "cocktails" e festas em terra".
Aprecio aqui duas coisas: a utilização do "já estamos todos", como se
Pimpinha voltasse a acolher o leitor no seu regaço como que dizendo:
"Sim, tu és dos meus e também estás farto de lançamentos, 'cocktails'
e festas em terra. Excepto se fores marroquino, leitor. Se for esse o
caso, por favor, exclui-te deste 'todos' ou então vai tomar banho
antes, e logo se vê".
Depois, é refrescante saber que Pimpinha está farta de lançamentos,
'cocktails' e festas. Eu julgava que nos últimos dias a tinha visto em
cerca de 250 revistas em lançamentos, 'cocktails' e festas, mas devia
ser outra pessoa. Só pode ser. Confusões minhas.
Em suma: finalmente, há outra vez uma razão para ler O INDEPENDENTE
todas as semanas. Tardou, mas não falhou. Pimpinha Jardim é a melhor
aquisição que um jornal já fez em toda a História da Imprensa mundial.
Nuno Markl
Presume-se que tenha falecido a 3 de Fevereiro de 1468. Um operário
metalúrgico e inventor alemão, a quem se deve, na década de 1440, a
invenção da imprensa. O poder da criação de Gutenberg seria
demonstrado em 1455, ano em que o inventor editaria a famosa Bíblia em
dois volumes.
Sim, a Bíblia de Gutenberg tornou-se num marco notável na História das
palavras impressas. Até ao passado fim-de-semana.
No passado fim-de-semana, o semanário português O INDEPENDENTE
publicou, discretamente, no seu suplemento VIDA, uma coluna de opinião
da autoria de Catarina Jardim. Quem é Catarina Jardim? Nada mais, nada
menos do que a popular Pimpinha Jardim. Que fica desde já a ganhar a
Gutenberg neste ponto - Gutenberg não tinha nenhum nome de mimo. Ele
era capaz de gostar de ter um nome de mimo - não deve ser fácil ser
Johannes Gensfleisch ZurLaden Zum Gutenberg - mas creio que ainda não
era muito comum, na Alemanha do século XV, atribuirem-se nomes de
mimo. Muita sorte se alguma das namoradas lhe chamou alguma vez JOGU,
o único diminutivo aceitável de Johannes Gutenberg. E mesmo assim não
é muito aceitável, porque soa demasiado próximo a iogurte, e isso é
uma indústria completamente diferente daquela na qual Gutenberg se
movia.
Voltemos então a Catarina Jardim e à sua coluna no jornal. O título do
artigo é TODOS A BORDO, e trata-se - como o nome indica - de um relato
detalhado sobre um cruzeiro a África que a jovem fez.
Ela diz, no início "O cruzeiro a África foi uma loucura, pode mesmo
dizer-se que foi o cruzeiro das festas - como alguns dos convidados
chamavam ao navio em que Luís Evaristo nos presenteou com MAIS UM
BeOne on Board". Gosto da maneira como ela fala, sem explicações nem
perdas de tempo, de pessoas e iniciativas sobre as quais boa parte dos
leitores não faz a mínima ideia quem sejam ou no que consistem. Nada
contra - isto faz com que qualquer leitor se sinta cúmplice e
rapidamente imerso no universo Pimpinha. Adiante.
Ficamos a saber que ela esteve em Tânger, e que a experiência foi,
possivelmente a mais marcante da vida desta jovem. Passo a ler o que
ela escreve:
"Tânger é bastante feia, muito suja e as pessoas têm um aspecto assustador."
Nunca fui a Tânger, mas já fui a sítios parecidos e subscrevo
inteiramente as palavras de Pimpinha. Malditas pessoas pobres, que só
estragam o nosso planeta com a sua sujidade e o seu ar assustador! É
preciso ser-se mesmo ruim para se escolher ser pobre, quando se pode
ser tão limpo e bonito. Quando se pode ser, em suma, rico.
Eu penso que a Pimpinha acertou em cheio na raiz de todos os problemas
mundiais da pobreza. Andam entidades a partir a cabeça em todo o mundo
a pensar nisto, andou a Princesa Diana a gastar tantas solas de
sapatos caros a visitar hospitais, capaz de apanhar uma doença, quando
nós temos a Pimpinha com a solução. Se calhar basta lavar estas
pessoas, e talvez - acompanhem-me neste raciocínio; Pimpinha vai ficar
orgulhosa de mim - se calhar basta lavar estas pessoas, e em vez de
gastar rios de dinheiro a mandar comida para África, porque não os
Médicos Sem Fronteiras passarem a andar munidos de botox. Botox!
Reparem: não é fazer cirurgias plásticas a toda esta gente feia que
vive nestes países, porque isso seria demais.
Mas, que diabo - botox? Vão-me dizer que não é possível ir de vez em
quando a estes sítios e dar botox a estas pobres almas? Como o mundo
ficaria mais bonito.
Adiante. Pimpinha desabafa, dizendo, sobre as pessoas de Marrocos,
"apesar de já ter viajado muito, nunca tinha visto uma cultura assim -
e sendo eu loura, não me senti nada segura ou confortável na cidade".
Talvez. Mas vamos supor que trocavam Pimpinha por, vamos supor, 10 mil
camelos. Era um bom negócio para o Independente. Dos 10 mil, escolhia,
vamos lá, 2 para passar a escrever a coluna - o que poderia trazer
melhorias significativas de qualidade - e ainda ficava com 9 mil 998.
O que, tendo em conta que Portugal está a ficar um deserto, pode vir a
revelar-se um investimento de futuro.
Pimpinha prossegue: "Já em segurança, animou-me a festa marroquina,
com toda a gente trajada a rigor". Suponho que, para a Pimpinha
Jardim, "uma festa marroquina com toda a gente trajada a rigor", tenha
sido assim tipo uma festa de Halloween, tendo em conta que os
marroquinos são - como a colunista diz umas linhas acima - gente feia
como nunca se viu.
Adiante. Ela diz: "A seguir ao jantar, mais um festão que voltou a
acabar de madrugada". Calma - esclareçam-me só neste aspecto, para eu
não me perder. Portanto, houve uma festa, não é? E a seguir, outra
festa. OK.
Uma pessoa corre o risco de se perder nestes cruzeiros, com toda esta
variedade de coisas que acontecem.
Diz Pimpinha: "Desta vez não deu mesmo para dormir já que fomos
expulsos dos camarotes às 9 da manhã, para só conseguirmos sair do
navio lá para as 14 horas. Tudo porque um marroquino se infiltrara no
barco e passara uma noite em grande, uma quebra inadmissível na
segurança".
Ora bom. Ora bom, ora bom, ora bom, ora bom.
Portanto, aqui a questão é: viagens a Marrocos e festas com pessoas
vestidas de marroquinos, tudo bem. Agora, se pudessem NÃO ESTAR LÁ os
marroquinos, isso é que era jeitoso. Malditos marroquinos, sempre com
a mania de estarem em Marrocos. E como é que acontece esta quebra de
segurança? Eu compreendo o drama de Pimpinha. É que o facto da
segurança deixar entrar um estafermo marroquino vestido de marroquino,
numa festa com gente bonita vestida de marroquina, isso só vem provar
que, se calhar, os amigos da Pimpinha não são assim tão mais bonitos
do que essa gente feia de Marrocos. E isso é coisa para deixar uma
pessoa deprimida.
Temos nós a nossa visão do mundo tão certinha e de repente aparece um
marroquino e uma brecha na segurança... Enfim - nada que uma ida às
compras não resolva, ao chegar a Lisboa, certo, Pimpinha?
Adiante. Diz Pimpinha: "Já cá fora esperava-nos um grupo de policias
com cães, para se certificarem de que ninguém vinha carregado de
mercadorias ilegais - e não sei como é que, depois de tantos avisos da
organização, ainda houve quem fosse apanhado com droga na mala!"
DROGA? NUMA FESTA DO JET SET PORTUGUÊS? NÃO! COMO? NÃO. Recuso-me a
acreditar. Deve ter sido confusão, Pimpinha. Era oregãos. Era
especiarias.
Pimpinha Jardim declara: "Mas o saldo foi bastante positivo. Aliás,
devia haver mais gente a arriscar fazer eventos como estes".
Gosto desta Pimpinha interventiva. Sim senhor, diga tudo o que tem a
dizer. Faça estremecer o mundo. E com assuntos que valham a pena.
Aliás, era capaz de ser uma boa ideia escrever um e-mail ao Bob Geldof
a tentar fazê-lo ver que essa história de organizar concertos para
combater a pobreza em África... Para quê? Geldof devia começar era a
organizar concertos para chamar a atenção do mundo para a falta de
cruzeiros com festas. Isso é que era. Mania das prioridades trocadas.
Que maçada.
Mesmo no final, a colunista remata dizendo: "Devia haver mais gente a
arriscar fazer eventos como estes - já estamos todos fartos dos
lançamentos, "cocktails" e festas em terra".
Aprecio aqui duas coisas: a utilização do "já estamos todos", como se
Pimpinha voltasse a acolher o leitor no seu regaço como que dizendo:
"Sim, tu és dos meus e também estás farto de lançamentos, 'cocktails'
e festas em terra. Excepto se fores marroquino, leitor. Se for esse o
caso, por favor, exclui-te deste 'todos' ou então vai tomar banho
antes, e logo se vê".
Depois, é refrescante saber que Pimpinha está farta de lançamentos,
'cocktails' e festas. Eu julgava que nos últimos dias a tinha visto em
cerca de 250 revistas em lançamentos, 'cocktails' e festas, mas devia
ser outra pessoa. Só pode ser. Confusões minhas.
Em suma: finalmente, há outra vez uma razão para ler O INDEPENDENTE
todas as semanas. Tardou, mas não falhou. Pimpinha Jardim é a melhor
aquisição que um jornal já fez em toda a História da Imprensa mundial.
Nuno Markl
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