Foi publicado o artigo seguinte, no Jornal "O Primeiro de Janeiro", de 28/10/2004, que de facto dá para reflectir e pensar.
A reforma da saúde
Há perto de dois anos, pouco tempo depois do início da cavalgada de mudanças que o actual Ministro da Saúde iniciou, disse em artigo neste Jornal (30. 01. 2003) que "nem tudo o que é mudança significa progresso e melhoria"
E continuava:"Por isso desconfio dos políticos que sistematicamente anunciam como mudança, benéfica e redentora, evidentemente, tudo o que fazem, substituindo o discurso racional pelo oco entusiasmo repetitivo e respondendo às críticas ou dúvidas dos outros pelo estafado e primário argumento de que são resistências à mudança"."... vejo com preocupação o que se está a passar na Saúde.Aí não há reforma, há mudança.
Mudança passou a ser palavra de ordem.Tudo está mal, nada se fez, ninguém pensou nos genéricos, ninguém pensou nas listas de espera, ninguém pensou na gestão hospitalar, ou, pior ainda, se pensaram nada fizeram ou apenas esboçaram umas tímidas experiências, mas agora sim, vamos salvar o mundo, tem sido este o discurso ministerial. E vai salvar-nos com a mudança!"
E terminava: "Espero que não tenhamos de pagar mais tarde custos elevados pelas mudanças salvadoras que este ministro está a fazer".
Quase dois anos passados a cavalgada continua. Nada foi seriamente avaliado.Uma metodologia de análise sem qualquer rigor científico, que esconde parâmetros, que ignora o passado, que seria inaceitável em qualquer trabalho académico, permite ao ministro anunciar ganhos em eficiência, em gastos, em custos, com corajosa demagogia. Mas mais mudanças se anunciam.:
- Mais umas dezenas de hospitais passarão a S.A.
- As taxas moderadoras passarão na ser escalonadas segundo a capacidade económica de cada doente.
- Irão mesmo ser construídos dez hospitais em parcerias público privado- No cartão do utente constará informação sobre a sua situação fiscal.
- A partir de 2005 o doente "inscrito para uma operação"(!) num hospital que tem atrasos no atendimento, passa para outro hospital (!) e, se também aí houver atrasos terá um "voucher" que lhe permitirá ir operar-se a uma qualquer clínica privada "contratualizada".
Assim vai a cavalgada em direcção ao futuroAinda sem avaliação da situação real dos trinta hospitais S.A. que justificação tem a extensão do processo a mais umas dezenas?
Será porque deixam de ser despesa pública e passam a investimento?
Garantia de maior eficiência e humanidade no atendimento não é com certeza.
Serão necessários dez novos hospitais? Onde estão os estudos que o demonstrem? É verdade que temos uma taxa de ocupação de 75%?
Se assim é onde está a prioridade? E porquê as parcerias? Já avaliaram o resultado deste método que estudos ingleses, académicos e sérios, contestam quer do ponto de vista económico quer, o que é pior, de qualidade de cuidados?
Sendo as taxas moderadoras apenas uma forma de disciplinar o acesso e nunca uma forma de financiamento da saúde, problema muito mais complexo que, esse sim, deveria ser urgentemente resolvido politicamente, porque será que o Ministério volta a afirmar a sua criação, sabendo que o Presidente da República a rejeita, bem apoiado na Constituição que lhe cabe defender? Será para se afirmar, depois, vítima impedida de continuar a salvar o Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
- E quanto ao cartão do utente conter informação fiscal?
Será que o Sr. Ministro pensou dois minutos a sério nesta decisão? Sendo a informação fiscal de cada um de nós apenas segura no próprio ano, pensa o Governo emitir todos os anos novos cartões? E a Comissão que no parlamento tem a seu cargo a defesa dos direitos e garantias dos cidadãos vai deixar que um cartão imposto ao utente contenha informações privadas e não indispensáveis?
- E finalmente, a coroar este enorme chorrilho de iniciativas, a decisão de resolver as listas de espera pelo pagamento no sector privado da cirurgia que dois hospitais públicos não puderem realizar. Pelo que ouvimos ao Sr. Ministro não se trata de um doente que, não podendo ser atendido nos serviços públicos de saúde é transferido, com tudo pago, para o sector privado que, a partir daí, fica responsável pelo doente no que respeita à patologia cirúrgica em causa, mas sim da encomenda de uma cirurgia que passa assim a ser uma simples acto que se pode encomendar, voltando depois o doente ao seu prestador de origem.
Actos médicos em saldo! Supermercados da saúde! Onde está a Ordem, Deus meu? Onde está essa famosa Entidade Reguladora da Saúde?E o tal documento de pagamento, o tal "voucher", como é determinado o seu valor? Vai ser o valor do respectivo GDH (valor do grupo de diagnósticos homogéneos que os Hospitais calculam para efeitos de orçamento)? Será o valor encontrado por concursos públicos? E engloba o quê? O pós-operatório? As complicações tardias? As recidivas? E abrangerá todas as cirurgias de todas as patologias? Já se iniciaram negociações? Com quem?Sem ponderação nem bom senso, com um financiamento irracional e de penúria, com um défice anunciado de dois mil duzentos e oitenta milhões de Euros, o actual Ministério, numa fuga para a frente pretende rapidamente, numa legislatura, transformar o Serviço Nacional de Saúde numa grande "holding" cheia de administradores privados bem pagos, em que o Estado seja progressiva, mas rapidamente, reduzido a pagador do sistema e a prestação de serviços passe a ser garantida, sobretudo pelo sector privado. Em poucos anos, se esta política, oposta aos objectivos da social-democracia, continuar, ficará Portugal a braços com o sistema mais caro e mais incontrolável dos sistemas de saúde do mundo!
E menos humano e solidário.
Aliás o S.A. não quererá dizer Sem Alma?
*Médico - Ex-Ministro da Saúde (PSD)
Escreve no «PJ» semanalmente, às quintas-feiras